Invisíveis para o Estado

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Coluna de opinião por Samoel Andrade — Diretor Nacional de Políticas Públicas da Rede Observatório BPC
Publicação quinzenal | Coluna Independente


A história real de Mary e Evanilda, duas mulheres que largaram tudo para garantir dignidade aos seus filhos e hoje são esquecidas pelas políticas públicas

O Brasil vive uma enorme dívida social com as mães atípicas — mulheres que, ao longo dos anos, deixaram suas vidas, seus sonhos e seus corpos para cuidar integralmente de seus filhos com deficiência. O nome disso é trabalho do cuidado, mas o Estado se recusa a reconhecer. A sociedade silencia. A imprensa quase não mostra. E elas continuam, solitárias, sustentando com suas próprias forças o que deveria ser responsabilidade coletiva.

Nesta coluna, apresento com orgulho e respeito duas dessas mulheres: Maria Alves, mais conhecida como Mary, e Evanilda. Duas mães, ativistas e guerreiras que compartilham mais do que amizade: compartilham dores, batalhas e o amor incondicional por seus filhos.

Mary Alves: “Minha vida parou para cuidar deles”

Mary mora em Cotia, São Paulo, e é mãe de três filhos com deficiência. Seu depoimento é um grito que não pode mais ser ignorado:

“Então, a minha vida parou, na verdade. Larguei a minha vida profissional, porque eu tinha uma carreira. Eu era gerente. Parei de trabalhar pra cuidar da minha filha, que tem microcefalia e paralisia cerebral por conta do vírus da Zika. Depois, veio o diagnóstico do meu outro filho, que é autista. Deixei tudo. Meu sonho era estudar, ser advogada ou médica. Estava pronta para abrir uma escola para enfermeiras. Mas a rotina de consultas, fisioterapia, exames e terapias não combinava com isso. O atendimento dela exigia tudo de mim. Eu tive que largar uma vida inteira.”

Mary hoje se sente esgotada física e mentalmente, sem apoio do governo, sem políticas públicas específicas e com a saúde fragilizada.

Evanilda: “Abrimos mão da vida por nossos filhos”

Natural do Acre, Evanilda é uma das mulheres mais corajosas que conheço. Abriu mão de tudo, inclusive da convivência com sua terra natal, para buscar tratamento médico para seus filhos em São Paulo, onde foi acolhida por Mary. Hoje, também vive em Cotia e se tornou uma ativista incansável.

“Ser mãe atípica é abrir mão de tudo. Deixamos de estudar, trabalhar, viver. Nenhuma empresa quer contratar uma mãe que precisa sair três vezes por semana pra levar o filho na terapia ou no hospital. A gente deixa de comer, de dormir, de tomar banho, de sair com os amigos, de visitar a família. Por quê? Porque nossos filhos não são aceitos pela sociedade. Vivemos o tempo todo lutando para que eles sejam respeitados.”

“O governo sequer reconhece isso como trabalho. Mas é. É um trabalho 24 horas, sem salário, sem férias, sem horário. É exaustivo. Quantas mães estão em depressão? Quantas choram sozinhas? E mesmo assim seguimos, porque é amor. É dever. Mas também é luta.”

O Estado que silencia e a sociedade que finge não ver

O que Mary e Evanilda vivem diariamente representa a realidade de milhares de mulheres brasileiras. São mães cuidadoras que trabalham mais do que qualquer jornada reconhecida, mas que não têm amparo, não têm renda, não têm voz nas decisões públicas.

É urgente a criação de políticas específicas para essas mães:

  • Renda do cuidado
  • Acesso prioritário à saúde e à saúde mental
  • Apoio domiciliar especializado
  • Formação e qualificação para o cuidado
  • Flexibilização de trabalho para mães atípicas
  • Reconhecimento legal do cuidado como trabalho

Elas não querem piedade. Elas querem respeito, dignidade, e o direito de cuidar sem se destruir no processo.

O que aprendemos com essas mães

Mary e Evanilda não são apenas mães. São guardiãs de direitos humanos. São ativistas que enfrentam a frieza dos sistemas, a negligência do poder público e o preconceito cotidiano. A amizade delas nasceu na dor, floresceu na luta e hoje se torna uma referência para tantas outras mulheres que não têm voz.

Essas histórias escancaram um ponto urgente: a incompatibilidade entre o BPC e o trabalho remunerado das mães cuidadoras.

De acordo com o Art. 8º da Lei Brasileira de Inclusão, é dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação de direitos fundamentais como saúde, educação, convivência familiar e dignidade.

Mas hoje, uma vez concedido o BPC ao filho com deficiência, essas mães ficam impedidas de acessar o mercado de trabalho, sob risco de perderem o benefício — muitas vezes, a única fonte de renda da família.

Essa realidade sufoca economicamente essas famílias e perpetua um ciclo de exclusão. O cuidado diário e integral que essas mães prestam deveria ser reconhecido como trabalho, como direito e, acima de tudo, como uma política pública. Mas o que vemos é o abandono.

É tempo de rever a legislação e construir uma política pública que reconheça o trabalho da mãe cuidadora, que permita conciliar cuidado e dignidade, sem colocar em risco o sustento da criança com deficiência.

A justiça social que tanto pregamos começa por aqui.

Esta coluna se compromete a dar voz a todas elas. A cada 15 dias, traremos histórias, análises e denúncias sobre a realidade das pessoas com deficiência e suas famílias — realidades que o Brasil insiste em esconder.

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